quinta-feira, 3 de março de 2011

VALOR SEM LIMITES

Outro dia, vi uma cena que merecia uma charge: uma senhora carregando seu cachorrinho no colo, enquanto trazia consigo o filho num colete preso por uma corda. A cena seria cômica, se não fosse trágica. É, no mínimo, estranho que alguém busque contato físico com um animal de estimação, privando desse carinho seu próprio rebento. Eis um perfeito retrato de como a humanidade inverteu seus valores.
A vida humana perdeu o sentido quando deixou de ter valor, ou melhor: quando começou a ter um valor monetário, financeiro. E isso não é de hoje. A confissão dos jovens que, por diversão(?), mataram o líder pataxó Galdino Jesus dos Santos, em 1997, espantou o Brasil: “pensamos que fosse um mendigo”. Desde quando a vida se mede pela condição social de uma pessoa?
Quando o crime aconteceu, a população logo fez eco à mesma e velha máxima utilizada ainda hoje: “Faltam limites para essa juventude que está aí”. De fato, é muito comum ouvirmos falar que o filho da vizinha está crescendo “solto demais”. Parece até que só se mantém a ordem quando as pessoas estão sob controle. A turminha de jovens que se encontra na pracinha, por exemplo, é chamada de desordeira porque ninguém “pode” com eles. Mas será que impor limites é a solução?
Quando perguntado sobre o fato de seus discípulos não se purificarem, isto é, não se lavarem antes das refeições (este rito era imposto pela lei judaica), Jesus respondeu duramente: “Não é o que vem de fora e entra na pessoa que a torna impura, mas sim o que sai dela” (Mc 7,15). Cristo queria dizer, com isso, que as coisas externas não tornam ninguém puro nem impuro, mas sim o seu caráter, moldado no interior do ser humano e revelado por suas atitudes.
As leis se tornam impositoras de limites na medida em que nos dizem o que podemos e o que não podemos fazer. Criadas e aplicadas pelos nossos representantes no Congresso Nacional, elas são externas a nós, impostas de cima para baixo, muitas vezes não correspondendo àquilo que, em nosso interior, acreditamos ser a decisão mais correta. Sem cultivar uma cultura de valores, elas poderão até ser obedecidas, mas não cumprirão o seu objetivo, que é educar para a cidadania.
A maior prova de que o caráter da pessoa vale mais do que a lei está no fato de que ela, sujeita à interpretação humana, tem sido manipulada através dos tempos. Essa, aliás, é a denúncia de Jesus, no texto que lembramos. Quando questionado, pouco antes de falar sobre o que entra e sai do corpo, Ele primeiro lembrou como a lei de honrar pai e mãe (inclusive acudindo-os financeiramente) era burlada, dando-se a desculpa de que o dinheiro estava destinado à oferta no Templo (Mc 7,9-13). É a mesma lógica que parece mover nossa classe política, que pratica 62% de aumento do próprio salário e, no mesmo período, aprova o aumento de menos de 6% do mínimo. Ou seja, usava-se – e hoje ainda é assim – a lei conforme o interesse de quem detém o poder.
É necessário, portanto, resgatar os valores humanos, em vez de insistir em impor limites. Um animal adestrado pula sem saber por que está pulando. Um/a jovem que não sabe por que deve dar à vida de um mendigo o mesmo valor que à sua própria, em que se diferencia do animal? Tentar educar uma pessoa depois de seu caráter formado é lutar para que a água corra rio acima. Por isso, reduzir a maioridade penal, decretar o toque de recolher para jovens, aprovar a pena de morte e a prisão perpétua, é esquivar-se da responsabilidade social de que todos partilhamos, ao ter ou não ensinado valores às nossas crianças. Depois de formados, não adianta marginalizá-los. Afinal, que valor tem uma sociedade que deturpa seu filhos para depois destruí-los?
Reflexão elaborada por José Luiz Possato Jr.
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